Dizem por aí que viver é procurar plantar boas
sementes pelo mundo para colher frutos saborosos, que possam nos encher de
alegria e orgulho.
Hoje senti mais uma vez o real sentido desta
afirmativa quando fiquei sabendo que meu livro “Onde estava o arco-íris?”,
lançado no ano passado pela Editora DIZ, serviu de base para o artigo
intitulado “Viver ou não no armário: um olhar sobre a identidade homoerótica”,
de autoria da professora Maria do Socorro Pinheiro (Doutoranda em Literatura e
Interculturalidade na UEPB – Universidade Estadual da Paraíba).
O trabalho foi apresentado na disciplina Literatura e Estudos de
Gênero, no doutorado em Literatura e Interculturalidade da UEPB. E o mais
interessante, para mim, é que a professora Socorro Pinheiro afirma que gostou bastante do livro e ficou surpresa
com o final reservado a Lulu, protagonista principal da história.
Quem quiser me dar o prazer
de ler o referido artigo, eis abaixo, na íntegra:
VIVER OU NÃO NO ARMÁRIO: UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE HOMOERÓTICA
Maria do Socorro Pinheiro
(Doutoranda em Literatura e Interculturalidade - UEPB)
“Bastinho quis sair daquele impasse, tomou a iniciativa, abraçou o apenado nos fortes braços que tinham sido construídos naquela detenção. Tão fortes os bíceps. Tão cheiro de homem naquela pele suada e com cheiro de testosterona. Sentiu que àquele abraço o sexo do comparsa havia respondido com leves reações genitais. Ele estava aceso. Ele estava pronto. Os dois podiam copular. Alan abraçou o homem, tirando-lhe vagarosamente a roupa que queria lançada ao chão para poder se colocar todo peso sobre o corpo de quem agora desejava. Abriram-se em espinhos, rasgaram-se sem sangue algum, fecharam-se em copas e prolongaram-se beijos por longos tempos. Depois dali, sabiam, o pacto havia sido reiterado, jamais iriam separar-se novamente” (PÁDUA, 2012, p. 123).
É com esse trecho do escritor Antonio de Pádua que nos sentimos estimulada a adentrar nas discussões em torno do homoerotismo, que tem ganhado espaço tanto na academia quanto fora dela. Há uma importância relevante nesses estudos, chamando atenção para questões ligadas à sexualidade, à identidade, às inclinações, às afetividades, de tal modo que encontramos textos literários com narrativas que abordam essencialmente temáticas sobre esse assunto. Textos literários que enfocam experiências entre sujeitos inclinados ao mesmo sexo, colocando em pauta temas do cotidiano, histórias de gays e lésbicas cujo enredo aponta para os desejos, as escolhas, o sexo.
Nossa proposta de trabalho é sobre a obra do escritor cearense Juracy Mendonça, “Onde estava o arco-íris?”, publicado em 2011. A obra em estudo conta a história de Lulu e sua trajetória na capital cearense. Um gay com dificuldades de assumir sua sexualidade, escondendo-a praticamente de todos de seu convívio; a trama traz discussões em relação à identidade, a questão de se assumir como sujeito de seus desejos e de suas escolhas, tendo em vista as consequências das opções assumidas. Quais seriam as dificuldades centrais da personagem Lulu para viver livremente sua sexualidade? Sair do armário lhe traria que tipo de repercussão? Como ele conseguiu lidar com seus impulsos homoafetivos?
Nosso trabalho se encaminha nessa linha interpretativa, estabelecendo um diálogo com os estudos sobre homoerotismo numa dimensão dialética, num jogo demasiadamente assinalado de poderes, tendo o sexo como o elemento desencadeador no processo de afirmação das identidades. Tal questão focaliza os sujeitos homoeróticos, visando uma discussão que possa delinear seu lugar de convivência e de socialização. Seria o sexo a marca da identidade humana? Qual é a identidade de um homem e de uma mulher? Poderíamos pensar no homoerotismo como uma identidade específica? Discutiremos a identidade a partir dos estudos de Elisabeth Badinter (1993) e adotaremos num sentido dialógico “A epistemologia do armário” (1993), de Eve Kosofsky Sedgwick, ao texto que nos propomos à análise.
Identidade gay
“Eu sinto atração é por rapazes. Tem um lá no colégio... Ai, meu Deus! É uma perdição! Mas, peraí, prima, o chato do meu pai não pode nem sonhar com isso” (MENDONÇA 2012, p. 13).
Da palavra nasceu o Homem e da árvore da vida o conhecimento e deste o sexo. Do conhecimento sexual nasceram diferentes realidades com amplos significados, códigos e símbolos. A depender de seu sexo (seguindo a lógica binária) se instalam os modelos de comportamento e os direcionamentos a seguir. A sexualidade vai sendo construída, com faces diferentes, uma pluralidade de frutos que se configuram a partir de excitações, atividades, preferências sexuais, advindas do desejo que podem ocorrer surpreendentemente pelo mesmo sexo ou não, “ela (a sexualidade) é polimorfa, polivalente, ultrapassa a necessidade fisiológica e tem a ver com a simbolização do desejo” (CHAUÍ, 1991, p. 15).
Lulu era uma criança com costumes diferentes para um garoto de sua época. Nasceu com o sexo masculino, “mas seu íntimo martelava-o com intuições femininas, principalmente quando imaginava ser uma bela mulher, como a mãe” (p. 12). O menino se descobre diferente, não tem o perfil que a sociedade culturalmente constrói para a virilidade do homem. Seus pontos de referência são outros, passam distantes de qualquer tipo de determinação e modelos sociais. Por conta disso, havia muitos obstáculos a enfrentar, sua sexualidade não se definia, ficava às escondidas, vivendo em meio às turbulências da família. Seus pais eram ausentes, pouco lhe davam atenção e o menino ficava aos cuidados da babá Elisa. Ele se entendia bem com mãe e detestava o pai, “com o passar dos anos foi agasalhando rancores e tornava-se cada vez mais revoltado, principalmente quando atentou ser Luís o responsável direto por sua carência de cuidados maternos” (p. 10).
Um de seus maiores enfrentamentos foi a falta de amor do pai, pois nunca demonstrou cuidados com o filho, sempre violência, grosseria, indiferença, “Lulu, encarando aquele homem segurando um cinturão para lhe bater, obteve a certeza de irreversível o ódio provido desde a infância pela parte paterna” (p. 33). Lulu conviveu com as agressões do pai, que não fazia questão de ocultar seu descontentamento ao filho. No âmbito familiar, as situações conflituosas foram se tornando frequentes na vida daquele menino, que passou a administrar sentimentos confusos vindos do meio em que vivia e da sua própria natureza. O universo materno foi razoavelmente tranquilo, dona Judite reparou a tempo a vida do filho, “na realidade, a mulher continuava tentando caprichar na educação do filho, acompanhando os estudos e as diversas atividades por ele exercitadas” (p. 27).
Segundo Elisabeth Badinter (1993) a simbiose que se estabelece entre mãe e filho varia de duração de uma época para outra e de uma cultura para outra, “quanto mais longa, íntima e proporcionadora de prazer mútuo, maior será a probabilidade de que o menino se torne feminino” (p. 50). Algo que não procedeu com Lulu, porque não recebeu (nem de um nem do outro) o acentuado afeto que pudesse despertar sua libido para o mesmo sexo. Se for possível pensar em teorias do amor materno que possam influenciar nas inclinações do filho, com Lulu ocorreu o inverso, a falta de amor de seus genitores. Fatores que determinem a dinâmica do desejo pelo mesmo sexo, em Lulu particularmente, devem ser buscados alhures.
A sociedade cria modelos diferentes de comportamento e enquadra a criança dentro deles (divisão também hetero/homo de pessoas). Para os meninos brincadeiras violentas, esportes; para as meninas bonecas, leituras, conversas com amigas, “nós lhe ensinamos pelo gesto, pela escolha dos brinquedos e das roupas a que sexo pertence. Mas só se tem verdadeiramente consciência da influência deste fenômeno de aprendizado quando o sexo da criança se torna problemático” (BADINTER, 1993, p. 41). Lulu não tinha aptidão para brincadeiras de meninos, preferia brincar de boneca, assumindo sempre o papel de mãe das bonecas ao lado de sua prima Natália; gostava de música e poesia; nas festas escolares recitava versos de sua autoria e cantava canções de artistas de sua preferência. A identidade de Lulu se constitui em meio aos conflitos de toda ordem. Como afirmar sua identidade, se o individuo ainda não sabe o que ele é, olha para os modelos existentes e não se enquadra neles?
Lulu estava fortemente inclinado para o mesmo sexo, mas não sabia ao certo como lidar com essa novidade. Não tinha certeza de sua homossexualidade. Dúvidas em torno de suas escolhas afetivo-sexuais assombravam suas ideias, “queria verificar se não estava equivocado na homossexualidade. Talvez houvesse se precipitado ao buscar aquele caminho inicial sem experimentar um amor feminino, capaz de repelir tantos pensamentos enleados em sua mente” (p. 45). Mesmo tendo desejos por rapazes, Lulu fez algumas tentativas com mulheres (situações não programadas por ele), colocando em prova seu comportamento, como na noite em que foi levado para a casa das prostituas, que ansiavam sacanagem com o jovem rapaz. Lulu ainda não havia pensado em transar com mulheres, agora tinha duas a sua frente, “ficou estático, abobalhado e, ao mesmo tempo eufórico, tentando antever como seria aquele resto de noite. Intimamente, dava-se ao luxo de escolher com qual das duas transaria primeiro” (p. 53). As prostitutas Zenaide e Teresa prepararam Lulu a um ambiente de orgia e com frases obcenas, “com esse jeitinho sonso, esse menino deve fazer qualquer puta gozar sem parar” (p. 53) estimulavam seu imaginário sexual, deixando-o excitado pela presença das duas, “Zenaide é gostosa e cheirosa, mas Teresa é mais bonita, mais delicada, sem falar nas coxas, refletia, quando elas retornaram à sala trajando camisolas transparentes, excitando-o a uma volúpia quase incontrolável” (p.54). O que seria uma experiência duplamente prazerosa tornou-se frustrada ou talvez aliviada pela chegada da mãe.
Alguma coisa diferente havia em Lulu, não era seu jeito de andar, de falar, vestimentas, muito mais que isso, era seu íntimo que direcionava suas aptidões. Começou a frequentar redutos homossexuais, baladas movimentadas, incursões pelos lugares festivos e alegres de Fortaleza. Ele queria entender suas preferências, experimentar novas situações, descobrir seus sentimentos. Ao lado de colegas e amigos, Lulu assumia ‘personas’ que fossem convenientes com seus relacionamentos sociais, mas sempre muito comedido, não se dando muito às influências.
“ele amoldou-se ao local, sendo apresentado, de vez em quando, a distintos homossexuais masculinos e femininos. Em suas considerações havia a conscientização de ter uma melhor sorte caso integrasse aquele círculo. Mas, ao contrário, lutava para não enveredar pela via mais fácil. “Se tiver de acontecer, deve ser ao meu modo, sem cair na gandaia”, dizia para si” (p. 61).
Lulu era um gay discreto, comportado, não gostava de alvoroço. Sempre que refletia sobre sua situação homoerótica, focalizava suas ideias em que tipo de comportamento assumir, “para ele, o mais importante era não ser aquele tipo popularmente depravado, alvo de piadas sem graça e denominações depreciativas como bicha, viado, gay...” (p. 58). Era pacífico, fugia de escândalos e encrencas, disfarçava um ar de seriedade e conhecimento, tentando a todo custo falsear sua ingenuidade em práticas homossexuais. Tinha ímpetos lascivos, mas agia em surdina, sub-repticiamente, analisando a presa e o momento do bote. Em outras circunstâncias, exibia larga experiência entre as mulheres.
A identidade de Lulu era vacilante, fluida, de caracterização temporária. O relacionamento com os amigos lhe ajudava nas afirmações de suas escolhas e na construção de sua identidade, que ainda permanecia mascarada. Como Lulu conseguiria sua liberdade, se ele mesmo não se assumia como gay, não se entendia com seus instintos sexuais? Que posicionamento tomar? O que fazer com seus desejos e até quando adiar sua primeira relação? Situações dilemáticas povoavam os sentidos de Lulu. Segundo Miguel Vale de Almeida (2012, p. 94), “a homossexualidade não é um mero aspecto privado do indivíduo, relevante apenas para amigos e colegas. Em vez disso, é uma identidade potencialmente transformativa que deve ser mostrada publicamente até deixar de ser um segredo vergonhoso, mas sim um modo legítimo de estar no mundo”.
O desejo reside em Lulu, é a sua forma de existir e de estar no mundo. Todo seu corpo reclama o contato de outro corpo erotizado, masculinizado, com cheiro de testosterona. Uma chama acesa que aguarda o instante certo de transmitir calor, amor, gozo. Entraves de vários tipos eram criados por Lulu, pois sentia medo de assumir sua sexualidade. Nas experiências com mulheres, ele não conseguia ereção, era uma realidade estranha, nauseante, que ele mesmo não procurava realizar. Numa das poucas vezes em que se viu ao lado de uma mulher seu sofrimento foi aterrorizador, a gaúcha “fez sua língua passear pelo corpo do rapaz. Deu algumas voltas e, finalmente, chegou onde queria: o pênis. Ele exprimiu uma espécie de gemido ante o contato daquela boca abrasadora. Porém, não conseguiu a ereção” (p. 80). Nas experiências com homens, surgiam novas frustrações, não conseguia se revelar. Ser gay ou não era uma questão que o perseguia, refletia diretamente na sua identidade.
SAIR OU NÃO DO ARMÁRIO
Ficar no armário ou sair dele? E as consequências da exposição? E os conflitos por ficar enclausurado? Como lidar com esses dilemas? Às vezes é mais fácil viver sob o véu de mentiras e disfarces do que assumir comportamentos e sentimentos que não estão claramente configurados e, que são geradores de confrontos e indeterminações no campo afetivo. O homem vive sob o império do desejo, segue seu comando, atiça os ímpetos, escolhe as vias de acesso e atrai fantasias. O percurso não é feito em linha reta, seria demasiadamente insípido. Ele prefere as encruzilhadas, com seus mistérios e esconderijos. Nesse plano do esconder, algumas pessoas tendem a ficar a fim de mascarar suas inclinações sexuais.
“O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora” (SEDGWICK, 1993, p. 22).
Lulu tinha medo de sair do armário, enfrentar as consequências de suas escolhas, os olhares da família, dos amigos e da mãe. Ficar no armário era uma opção prudente, a saída precisaria de espera, momento certo, avaliar o segredo ou a exposição. Pensamento vacilante que o levava ora para um lugar ora para outro, mas no seu íntimo sabia de suas tendências homossexuais, embora fizesse questão de escondê-las. A insegurança e o acanhamento impediam na realização de seus projetos.
“sabia da reação desfavorável de seus pais se descobrissem ter um filho “mariquinha” (designação da época para homens afeminados), mas antevia ser este o campo onde se realizaria amorosamente. Por isso, perseverava na hesitação cruel: liberar o fluxo dos desejos correntes em seu âmago; ou escondê-los, para seguir a tradição heterossexual da sua família” (p. 17).
Ele não teve muitas paixões, o suficiente para perceber “o campo onde se realizaria amorosamente”. A primeira delas por Michel, decidindo que seria com ele sua primeira aventura homossexual. Arquitetou laboriosamente um plano para ficar a sós com o rapaz e esperou a hora para sugar o veneno daquele noviço tão ansioso ao sexo. Sua tentativa foi frustrante, o rapaz não correspondeu aos apelos eróticos de Lulu, ofendendo-o com frases grosseiras e empurrões.
“- raciocinou e seguiu até o compartimento, onde abriu a porta e percebeu Michel deitado na cama, entregue a um sono profundo. Entrou e ficou admirando o semblante sonolento, concentrando atenção no corpo tão cobiçado por ele e agora tão próximo, coberto apenas por uma cueca. Não resistiu à tentação e acariciou os cabelos, passando depois ao rosto, barriga, pernas, entusiasmando-se com a inércia do rapaz diante dos toques. Posteriormente, foi ao objetivo principal: lentamente, apoderou-se do órgão sexual, o qual começou a crescer diante de um constante alisamento...” (2102, p. 22-23).
Essa cena Lulu nunca esqueceu, o toque em seu corpo, entusiasmando mais ainda a tentação, a vontade de tê-lo em seus braços. Foi seu primeiro amor, um desejo aflorado, indomado, “essa paixão eu vou levar para o túmulo, mas não o procuro mais” (p. 70). Outras atrações surgiram, por Fabiano, professor de música, por Tony, violonista, “Lulu tirou proveito das fortes ondas e, submergindo por baixo de Tony, tomou nas mãos o membro sexual escondido na minúscula tanga, soltando-o segundo depois sem se importar com a reação do violonista” (p. 64). Sentiu um novo amor por Juciê, alimentou fantasias, cenas eróticas que despertaram seu imaginário, mas nada conseguiu com ele, “aos 27 anos de idade, Lulu era um rapaz envolvido com diversas atividades, mas sentia-se infeliz porque ainda não havia concretizado seu lascivo apetite” (p. 90). Até quando iria ficar vivendo de encenações? Por que tanto medo de assumir sua homossexualidade?
Segundo Sedgwick (1993, p. 22), “a epistemologia do armário deu uma consistência abrangente à cultura e à identidade gays, ao longo do século XX, não significa negar que possibilidades cruciais em torno e fora do armário passaram por mudanças importantes para as pessoas gays”. O armário é um refúgio aparentemente apropriado para aqueles que temem o encontro com seu próprio eu e com o outro, “em conversas prolongadas não deixava transparecer seu forte lado feminino” (p. 58). Mas o armário não significa proteção, pois a todo o momento (nas circunstâncias menos esperadas) a porta se abre, rompendo o silenciamento e introduzindo as multidões (que nem são tanto assim) a espaço aberto. A saída dele pode garantir a liberdade, compromisso com seus ideais, unidade de sentimentos e ações. É o enfrentamento das muitas faces que se lançam no aqui e no agora para assumir-se perante o mundo seus gostos, suas preferências, sem equívocos e ambivalências.
A imagem do armário é uma situação conflituosa, dramática, “mais cedo ou mais tarde, tu serás forçado a sair de cima do muro, ou de “dentro do armário”, como se diz por aí” (p. 85). Evidentemente que aspectos ideológicos e sociais em ficar dentro ou fora do armário vêm à tona, provocando reações diferentes e ao mesmo tempo o desenvolvimento da cultura gay, que só acontece efetivamente se o armário for esvaziado, destruído. Sedgwick (1993) fala do potencial transformador que “a saída do armário” provoca - uma mudança significativa nos papeis que tende a levar o sujeito à salvação. Lulu saiu do armário, revelou seu segredo, homossexual “trintão virgem” quando saiu de sua cidade e do meio de sua família para trabalhar em São Paulo.
“os contatos com um povo de mentalidade mais aberta e a distância de sua mãe lhe abriram novos horizontes. Lulu encontrou espaço para libertar sua homossexualidade, recuperando, assim, o tempo perdido, porque por lá não enxergou mesquinharia de todo mundo querer saber se fulano era bicha; se sicrano era vagabundo; se beltrano passava fome etc.” (p. 97).
Lulu teve liberdade para ser gay e ficar à vontade com suas fantasias. De acordo com Sedgwick (1993), “a saída do armário pode trazer a revelação de um desconhecimento poderoso como um ato de desconhecer, não como o vácuo ou o vazio que ele finge ser, mas como um espaço epistemológico pesado, ocupado e consequente” (p. 35). A visibilidade torna-se o ponto de partida para outra mentalidade (com outras cores, o colorido do arco-íris), nascente de lutas e escolhas e enraizada num processo político de atos praticados não isoladamente. Lulu conheceu Fernando, colega de trabalho, com quem começou um envolvimento, “o cara queria Lulu; e Lulu queria o cara” (p. 98), que foi melhorar na cama, “os dois começaram a “trocar figurinhas” e em seis meses já estavam morando juntos, cada vez mais alegres em habitar um mundo só deles, sem interferência de ninguém” (p. 98).
A homossexualidade num espaço de possibilidades e de abertura de segredos é indicativa da saída do armário. O desconhecido mundo habitado agora na visibilidade dos atos e das expectativas que a identidade gay revalada permite. Essa postura adentra o âmbito das linguagens permitindo buscas, encontros, conhecimento, transformação, “esses últimos 10 anos valeram por toda a minha vida. Meu cabaço voou para bem longe” (p. 99). A liberação do armário promoveu a vontade de dizer o que sentia naturalmente, sem pensar na confusão ou na desorientação, como assegura Sedgwick (1993), que estão na base da mudança.
A simbologia do armário representa o espaço-tempo dos segredos, trancafiados, impedidos de exposição. Esse móvel traz a imagem do ventre da mãe, aspecto positivo de refúgio e aconchego (por um tempo determinado), como também lembra a sepultura, repositório da morte, jazigo dos sonhos. Viver no armário é esconder sua verdadeira face, é escolher o fingimento, é ficar na sepultura e não no ventre materno, adotando sempre mecanismos para trapacear a si mesmo e o outro, “Lulu, também com umas e outras no cérebro, mentiu descaradamente: - Já transei com várias mulheres, mas nunca tive a sorte de pegar uma insaciável. Quem sabe, um dia...” (p. 78).
Lulu saiu do armário e voltou a ele várias vezes. Não sabia viver com sua liberdade, sua autorrevelação; sentia falta de sua mãe, dos olhares críticos das pessoas que suspeitavam de seu homossexualismo. Ele volta para o armário, sua sepultura psíquica, na dependência dos limites.
“sempre fui assim, meio esquisito. Vê se dá pra entender: como a situação estava ficando cada vez melhor, comecei a me ver perdido no mundo, sem ter quem limitasse minhas atitudes... [...] Pode parecer incrível, mas passei a sentir falta da vigilância, dos cuidados de dona Judite. Fiquei necessitado até mesmo daquela obsessão dos nossos vizinhos em saber se eu era bicha ou não” (p. 99).
Não era fácil para Lulu evidenciar sua identidade gay e se acostumar com ela, expondo sua imagem a todo tipo de julgamento e esperando confiantemente ser aceito. Complicações surgiam nos enfrentamentos consigo mesmo e com o outro. Não há como controlar as reações de quem sabe ou se surpreende ao saber sobre alguém ser homossexual.
“em muitas relações, senão na maioria delas, assumir-se é uma questão de intuições ou convicções que se cristalizam, que já estavam no ar por algum tempo e que já tinham estabelecido seus circuitos de força de silencioso desprezo, de silenciosa chantagem, de silencioso deslumbramento, de silenciosa cumplicidade” (SEDGWICK, 1993, p. 38).
As idas e vindas ao armário podem sugerir fragilidade ou mesmo comodidade. Avaliar a natureza das circunstâncias, se a exposição vale a pena, se os prejuízos são passíveis de reversão; aspectos notadamente estratégicos para garantir sua integridade e sua autoafirmação, “viver no armário, e então sair dele, nunca são questões puramente herméticas. As geografias pessoais e políticas são, antes, as mais imponderáveis e convulsivas do segredo aberto” (SEDGWICK, 1993, p. 39). Lulu tem uma geografia pessoal diferente dos outros gays, resolve casar para agradar a mãe, “cometeu, talvez, o maior erro da sua vida: no desespero, e sempre buscando um caminho certo em meio à escuridão, casou-se com Luciene, a ex-namorada dos tempos de quarteto” (p. 102). O que teria de interessante nisso? Constituir uma família, ter uma filha e “comprovar sua inutilidade como marido de uma mulher” (p. 102).
Lulu chega aos sessenta anos na companhia apenas da filha, sem relacionamentos afetivos nem com homem nem mulher. Sua relação com o armário nunca se acabou, a porta estava sempre aberta, uma extensão do seu próprio eu onde eram tecidas suas fantasias, “assumir-se não acaba com a relação de ninguém com o armário, inclusive, de maneira turbulenta, com o armário do outro” (SEDGWICK, 1993, p. 40). Certamente era a turbulência que Lulu evitava.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a saída do armário significa liberdade e vontade de consolidar sua identidade gay, isso não refletiria diretamente numa tomada de posição política da categoria de pessoas (o homossexual no caso) que luta pelos seus direitos e pela valorização de sua cultura? Tal decisão ocasiona mudança de mentalidade em quem está no armário e em quem suspeita da sexualidade. O armário como processo ideológico acaba atingindo a todos que estão inseridos nessa realidade.
O desejo pelo mesmo sexo, numa sociedade que se organiza dentro de uma ótica binária, tem um teor de complexidade em torno das definições de identidades sejam quais forem suas práticas. Lulu sente atração por rapazes, mas enfrenta problemas de afirmação e procura entender melhor suas confusões sentimentais. Indagado por uma colega sobre qual estágio estaria, “ela quer saber se você já transou, se tem apenas vontade ou se luta contra isso – explicou Magno” (p.37), assim pensando se o estágio já definiria a homossexualidade ou se concretizaria apenas com a atividade genital.
Seja como for, vemos a identidade gay como um grande projeto cuja execução acontece por meio de atitudes (mesmo que sejam isoladamente) de indivíduos que assumem comportamentos coerentes com suas convicções ideológicas e defendem suas opções sexuais como um detalhe entre tantos que constituem a natureza humana. A homossexualidade não compromete em nada a capacidade intelectiva de quem assim se define. A prática sexual gay coloca em evidência um grupo de pessoas (denominada minoria) cuja identidade está em construção como as demais. Particularizar as identidades às preferências sexuais é reduzir a natureza humana a normalizações dentro de uma logística que reforça os preconceitos e as dominações, pondo efetivamente o eu em desequilíbrio psíquico.
A prisão no armário, espaço epistemológico, pesado, escuro, fechado se contrapondo ao colorido do arco-íris, com suas cores evidenciadoras de luz, a céu aberto, visível aos olhos de todos, a simbolizar a liberdade, a possibilidade do encontro. Lulu habitava as fronteiras, vivia na escuridão e na luz, no enclausuramento e na liberdade, nos desencontros e nas buscas das cores (amores) do arco-íris.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ALMEIDA, Miguel Vale de. Teoria queer e a contestação da categoria “gênero”. In CASCAIS, Antonio Fernando (org.). Indisciplinar a teoria – estudos gays, lésbicos e queer. Lisboa: Fenda Edições, 2004.
BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12ª ed. São Paulo: editora brasiliense, 1991.
FOUCAULT, Michel. Historia da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
MENDONÇA, Juracy. Onde estava o arco-íris? Fortaleza: DIZ Editoração e Produção de Eventos Culturais Ltda, 2011.
PÁDUA, Antonio de. Tal Brazil, queer romance: romance da (s) história (s) dos afetos ou história (s) do (s) romance (s) dos afetos. São Paulo: Scortecci, 2012.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário. In: ABELOVE, Henry et alli. The lesbian and gay studies reader. New York/London, Routledge, 1993:45-61. Tradução: Plínio Dentzien; Revisão: Richard Miskolci e Júlio Assis Simões].
TOMAZ Tadeu SILVA (organizador). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
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